terça-feira, 3 de novembro de 2009

Leitura diferenciada de Dom Casmurro

Dom Casmurro, de Machado de Assis, traz memórias de um personagem amargurado que acredita ter sido traído pela mulher

Bento Santiago, o amargurado e solitário personagem-narrador, diz ter sido traído por Capitu. Esse suposto adultério é pano de fundo para que Machado de Assis introduza de forma inovadora questões relativas à situação da mulher

Publicado pela primeira vez em 1899, Dom Casmurro é uma das grandes obras de Machado de Assis e confirma o olhar certeiro e crítico que o autor estendia sobre toda a sociedade brasileira. Também a temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da litera-tura brasileira: Capitu.

MUITAS LEITURAS
Há uma discussão em torno da obra que alimenta os espíritos mais inflamados: Capitu traiu ou não seu marido Bento Santiago, o Bentinho?


O romance, entretanto, presta-se a muitas leituras, e é interessante ver como a recepção ao livro se modificou com o passar do tempo. Quando foi lançado, era visto como o relato inquestionável de uma situação de adultério, do ponto de vista do marido traído. Depois dos anos 1960, quando questões relativas aos direitos da mulher assumiram importância maior em todo o mundo, surgiram interpretações que indicavam outra possibilidade: a de que a narrativa pudesse ser expressão de um ciúme doentio, que cega o narrador e o faz conceber uma situação imaginária de traição.
Machado de Assis, autor sutil e de penetração aguda em questões sociais, arma o problema e testa seu leitor. É impressionante como isso vale ainda hoje, mais de um século depois do lançamento do livro. O romance é a história de um homem de posses que ama uma moça pobre e esperta e se casa com ela. Em sua velhice, ele escreve um romance de memórias para compreender melhor a vida.


Capitu, até a metade do livro, é quem dá as cartas na relação. É inteligente, tem iniciativa, procura articular maneiras de livrá-lo do seminário etc. Trata-se de uma garota humilde, mas avançada e independente, muito diferente da mulher vista como modelo pela sociedade patriarcal do século XIX. Nesse sentido, Capitu representa no livro duas categorias sociais marginalizadas no Brasil oitocentista: os pobres e as mulheres. A personagem acabará por “perturbar” a família abastada, ao casar-se com o homem rico.


Percebe-se, por isso, o peso do possível adultério em suas costas. Não se trata apenas de uma questão conjugal entre iguais, mas de uma condenação de classe. Bentinho utiliza o arbítrio da palavra para culpar sua esposa. Mas é ele quem narra os acontecimentos e, por isso, pode manipular os fatos da maneira que melhor lhe convém. Não se sabe até que ponto os fatos relatados correspondem ao que ocorreu, ou são uma interpretação feita pelo personagem, que, além de tudo, escreve que não tem boa memória.


Nesse sentido, a questão central do livro não é o adultério, e sim como Machado introduz na literatura brasileira o problema das classes e, ainda, de forma inovadora, a questão da mulher. Dom Casmurro coloca no centro de sua temática a menina que não se deixa comandar e, em virtude disso, perturba a ordem vigente naquele ambiente social estreito e conservador.

ENREDO
O romance inicia-se numa situação posterior a todos os seus acontecimentos. Bento Santiago, já um homem de idade, conta ao leitor como recebeu a alcunha de Dom Casmurro. A expressão fora inventada por um jovem poeta, que tentara ler para ele no trem alguns de seus versos. Como Bento cochilara durante a leitura, o rapaz ficou chateado e começou a chamá-lo daquela forma.


O narrador inicia então o projeto de rememorar sua existência, o que ele chama de “atar as duas pontas da vida”. O leitor é apresentado à infância de Bentinho, quando ele vivia com a família num casarão da rua de Matacavalos.


O primeiro fato relevante narrado é também seu primeiro motivo de preocupação. Bentinho escuta uma conversa entre José Dias e dona Glória: ela pretende mandá-lo ao seminário no cumprimento de uma promessa feita pouco antes de seu nascimento. A mãe, que já havia perdido um filho, prometera que, se o segundo filho nascesse “varão”, ela faria dele padre. Na conversa, dona Glória soubera da amizade estreita entre o menino e a filha de Pádua, Capitolina.


Bentinho fica furioso com José Dias, que o denunciara, e expõe a situação a Capitu. A menina ouve tudo com atenção e começa a arquitetar uma maneira de Bentinho escapar do seminário, mas todos os seus planos fracassam. O garoto segue para o seminário, mas, antes de partir, sela, com um beijo em Capitu, a promessa de que se casaria com ela.


No seminário, Bentinho conhece Ezequiel de Souza Escobar, que se torna seu melhor amigo. Em uma visita a sua família, Bentinho leva Escobar e Capitu o conhece.


Enquanto Bentinho estuda para se tornar padre, Capitu estreita relações com dona Glória, que passa a ver com bons olhos a relação do filho com a garota. Dona Glória ainda não sabe, contudo, como resolver o problema da promessa e pensa em consultar o papa. Escobar é quem encontra a solução: a mãe, em desespero, prometera a Deus um sacerdote que não precisava, necessariamente, ser Bentinho. Por isso, no lugar dele, um escravo é enviado ao seminário e ordena-se padre.

TRISTE E NOSTÁLGICO
Bentinho vai estudar direito no Largo de São Francisco, em São Paulo. Quando conclui os estudos, torna-se o doutor Bento de Albuquerque Santiago. Ocorre então o casamento tão esperado entre Bento e Capitu. Escobar, por seu lado, casara-se com Sancha, uma antiga amiga de colégio de Capitu. Capitu e Bentinho formam um “duo afinadíssimo”.


Essa felicidade, entretanto, começa a ser ameaçada com a demora do casal em ter um filho. Escobar e Sancha não encontram a mesma dificuldade: têm uma bela menina, a quem colocam o nome de Capitolina.


Depois de alguns anos, Capitu finalmente tem um filho, e o casal pode retribuir a homenagem que Escobar e Sancha lhe haviam prestado: o filho é batizado com o nome de Ezequiel.


Os casais passam a conviver intensamente. Bento vê uma semelhança terrível entre o pequeno Ezequiel e seu amigo Escobar, que, numa de suas aventuras na praia – o personagem era excelente nadador –, morre afogado.


Bento enxerga no filho a figura do amigo falecido e fica convencido de que fora traído pela mulher. Resolve suicidar-se bebendo uma xícara de café envenenado. Quando Ezequiel entra em seu escritório, decide matar a criança, mas desiste no último momento. Diz ao garoto, então, que não é seu pai. Capitu escuta tudo e lamenta-se pelo ciúme de Bentinho, que, segundo ela, fora despertado pela casualidade da semelhança.


Após inúmeras discussões, o casal decide separar-se. Arruma-se uma viagem para a Europa com o intuito de encobrir a nova situação, que levantaria muita polêmica. O protagonista retorna sozinho ao Brasil e se torna, pouco a pouco, o amargo Dom Casmurro. Capitu morre no exterior e Ezequiel tenta reatar relações com ele, mas a semelhança extrema com Escobar faz com que Bento Santiago o rejeite novamente.


O destino de Ezequiel é infeliz: ele morre de febre tifóide durante uma pesquisa arqueológica em Jerusalém.


Triste e nostálgico, o narrador constrói uma casa que imita sua casa de infância, na rua de Matacavalos. O próprio livro é também uma tentativa de recuperar o sentido de sua vida. No fim, o narrador parece menosprezar um pouco a própria criação. Convence-se de que o melhor a fazer agora é escrever outra obra sobre “a história dos subúrbios”.

NARRADOR
O narrador é Bento Santiago, transformado já no velho Dom Casmurro. O foco narrativo é, portanto, em primeira pessoa e toda a narrativa é uma lembrança do personagem sobre sua vida, desde os tempos de criança, quando ainda era chamado de Bentinho.

TEMPO
O tempo da narrativa é psicológico, e não cronológico. Esse recurso é chamado impressionismo, porque o narrador se detém nas experiências que marcaram sua subjetividade. Seria usada pelo escritor francês Marcel Proust em sua obra Em Busca do Tempo Perdido. A falibilidade da memória surge como fator de complexidade, uma vez que uma lembrança só pode ser acessada de um momento presente.


Os acontecimentos, então, passam pelo filtro da subjetividade presente. É por isso que a descrição que o narrador faz de Capitu, como uma pessoa volúvel e sensual, deve ser posta em dúvida pelo leitor. O sentimento de ciúme exacerbado de Bento pode ter desvirtuado a figura da personagem.