terça-feira, 3 de novembro de 2009

Foco Narrativo ou Ponto de Vista do Narrador

Foco Narrativo ou Ponto de Vista do Narrador, constitui-se o «ângulo visual» pelo qual serão narrados os acontecimentos de um conto, novela ou romance. É um elemento de especial importância na estrutura de uma narrativa, porque responde à pergunta: Quem conta a história?

Os críticos norte-americanos, Cleanth Brooks e Robert Pen, estabeleceram um quadro sinótico formado por quatro focos narrativos:

1. A personagem principal conta sua história - foco narrativo na primeira pessoa ou interno.

2. Uma personagem secundária conta a história da personagem central - foco narrativo na primeira pessoa ou interno.

3. O Narrador conta a história como observador - foco narrativo na terceira pessoa ou externo.

4. O escritor, analítico ou onisciente (sabedor de tudo), no papel de narrador, conta a história - foco narrativo na terceira pessoa.

Veremos, a seguir, que cada um desses focos trará vantagens e desvantagens ao ficcionista, pois irão favorecer ou limitar seu ângulo visual em ralação ao panorama da história. O escritor terá de optar por um deles. E se sua opção se ajustar à história a ser narrada, é o quanto basta pare ele, ficcionista, e para nós leitores.

a) O Foco Narrativo Será Interno ou na Primeira Pessoa (do singular: eu), se o narrador participa dos acontecimentos da história. É, portanto, um narrador com dupla função, ou seja: é «narrador e personagem» ao mesmo tempo. No geral, ele será protagonista; visto que, como personagem secundário (que conta a história do protagonista), raramente é usado. Sendo protagonista, o narrador recebe melhor destaque. No entanto, a área da narrativa fica circunscrita exclusivamente ao narrador, isto é, um tanto limitada, pois, se trata de sua história.

No trecho abaixo, extraído do conto Missa do Galo, de Machado de Assis, temos um bom exemplo do foco narrativo interno:

“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir (...).”

Neste parágrafo de abertura do conto, já é possível identificar o foco narrativo que fica evidente pela flexão dos verbos: pude, tive, contava. Além disso, o parágrafo nos permite, também, concluir que o narrador é o protagonista do conto. Temos, portanto, um narrador que nos conta sua história.

Nas narrações em primeira pessoa, o narrador protagonista tem uma visão própria, individual dos fatos. O que implica em uma visão muito reduzida das coisas, porque ele se vê impossibilitado de dispensar às demais personagens a mesma atenção que dispensa a si próprio. A principal característica desse foco narrativo é, então, a visão subjetiva e limitada que o narrador tem dos fatos.

É o caso da personagem-narrador Bentinho, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis: Capitu, sua mulher, o traiu? Bentinho acredita que sim. Mas nós leitores, não podemos ter certeza disso, uma vez que o fato nos é narrado pelo marido, que se julga traído. Tudo o que sabemos nos chega filtrado pelos sentimentos do Bentinho, incapaz de analisar os fatos com isenção. Por outro lado, esse ângulo de visão, tem suas vantagens. A história ganha, aos olhos do leitor, maior verossimilhança, devido à narrativa não precisar de intermediário: a personagem e narrador que “viveu” a história conta-a diretamente ao leitor; e dá a este a impressão de ser o exclusivo confidente do caso.

b) O Foco Narrativo Será Externo ou na Terceira Pessoa se o narrador somente observou, testemunhou os acontecimentos. Assim, a narrativa será feita por um narrador-observador. Como, ele agora não simula um indivíduo, vê-se compelido a contar apenas o que observou. Não conhece o pensamento, nem o passado das personagens. Não invade o íntimo da personagem para comentar comportamento dela. Exprime uma visão incompleta porque narra à história como mero expectador; seu relato tende a ser mais imparcial e objetivo. Observe:

“Ninguém ali sabia ao certo se a Machona era viúva ou desquitada, os filhos não se pareciam um com os outros. A Das Dores sim afirmavam que fora casada e que largara o marido, para meter-se com um homem do comércio (...)”. (Aluísio de Azevedo, O Cortiço)

Neste fragmento, percebe-se que o narrador-observador desconhece o passado das personagens, baseia-se naquilo que observa e nas afirmações das outras personagens.

Missal e Broquéis, Cruz e Sousa - Simbolismo

Análise da obra

A publicação das obras Missal e Broquéis em 1893, marca o início do Simbolismo no Brasil. Missal e Broquéis só não passaram despercebidas, enquanto obras, por força de uma pequena parte da crítica e de um público ainda mais restrito. O mérito só veio com o tempo e com o reconhecimento da genialidade de seu autor. Cabe lembrar que a poesia brasileira praticamente desconhecia a prosa entre suas publicações, poucos ou quase ninguém havia lido Charles Baudelaire, aliás um dos iniciadores do Simbolismo, o que obrigou a um certo estranhamento quanto a Missal. Mesmo Broquéis recebeu do público e da crítica opiniões divergentes. Foi atacado por José Veríssimo e exaltado por Sílvio Romero, e pareceu chocar os leitores acostumados com a poesia parnasiana, nitidamente dominadora naquele momento.

Os poemas de Cruz e Sousa abandonam o significado explícito e lógico para buscar a ilogicidade e a sugestão vaga, regras, aliás, de fundamental importância para a poética simbolista. A multiplicidade de imagens e de sonoridades gera uma explosão sensorial no leitor, conduzindo-o a um estado de espanto geral e de choque diante do inusitado. As imagens, aparentemente inconciliáveis, múltiplas e repetidas, despertam um psiquismo intenso. Essa fusão de abstrações cria o sensorialismo simbolista e faz brotar a novidade.

Alguns textos comentados de Missal

Os poemas de Missal são escritos em prosa. O Simbolismo ainda é algo latente nessas realizações, não atingindo o grau de musicalidade, plasticidade e sugestão desejados. Por ser ainda a primeira obra de Cruz e Sousa na linha simbolista, não consegue atingir a sublimidade e a alquimia verbal de suas realizações posteriores. Vale mais como registro do que realmente como referência do Simbolismo no Brasil. Mesmo que saibamos da influência da poesia em prosa de Charles Baudelaire sobre Cruz e Sousa, são raros os momentos de genialidade dessa obra, se compararmos com os textos do grande mestre francês. Essas influências são ainda tênues, mais frutos da paixão do que da inspiração irmanada. Falta, sem dúvida, o brilho e os rasgos da impetuosidade baudelairiana a Cruz e Sousa nesses poemas. Essa força só poderá ser melhor admirada, indiscutivelmente, nos versos de Broquéis.

Ainda que não nos caiba julgar os motivos que levaram à adoção de Missal, não nos parece coerente essa decisão dos examinadores que, ao contrário de atrair os jovens leitores. tende a afastá-los ainda mais desse grande poeta que é Cruz e Sousa.

Texto 1 - Oração ao Sol

Sol, rei astral, deus dos sidéreos Azuis, que fazes cantar de luz os prados verdes, cantar as águas! Sol imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a Fecundidade! Luminoso sangue original que alimentas o pulmão da Terra, o Seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório catedralesco de onde refulges e triunfas, ouve esta Oração que te consagro neste branco Missal da excelsa Religião da Arte, esmaltado no marfim ebúrneo das iluminuras do Pensamento.

Permite que um instante repouse na calma das Idéias, concentre cultualmente o Espírito, como no recolhido silêncio de igrejas góticas, e deixe lá fora, no rumor do mundo, o tropel infernal dos homens ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha acesa das formidandas paixões sangrentas.

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Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo artista grego das formas indeléveis e prefulgentes da Luz! pelo exotismo asiático desses deslumbramentos, pelos majestosos cerimoniais da basílica celeste a que tu presides, que esta Oração vá, suba e penetre os etéreos paços esplendorosos e lá para sempre vibre, se eternize através das forças firmes, num som álacre, cantante, de clarim proclamador e guerreiro.

Comentários: Esse longo poema em prosa representa uma espécie de ‘profissão de fé’ dentro da obra de Cruz e Sousa, já que estabelece muitíssimo bem sua intenção simbolista. O mesmo ocorre no poema de abertura de Broquéis, Antífona”. E interessante destacar que essa invocação do sol tem a força de uma oração ou pedido para realizar seus poemas sem a interferência daqueles que detêm o poder sobre o mundo dos homens e das artes. O mesmo ocorre na epígrafe de Baudelaire utilizada em Broquéis.

Texto 2 - Os Cânticos

No templo branco, que os mármores augustos e as cinzeluras douradas esmaltam e solenizam com resplandecência, dentre a profusão suntuosa das luzes, suavíssimas vozes cantam.

Coros edênicos inefavelmente desprendem-se de gargantas límpidas, em finas pratas de som, que parecem dar ainda mais brancura e sonoridade à vastidão do templo sonoro.

E as vozes sobem claras, cantantes, luminosas como astros.

Cristos aristocráticos de marfim lavrado, como fidalgos e desfalecidos príncipes medievos apaixonados, emudecem diante dos Cânticos, da grande exaltação de amor que se desprende das vozes em fios sutilíssimos de voluptuosa harmonia.

O seu sangue delicado, ricamente trabalhado) em rubim, mais viso, mais luminoso e vermelho fulge ao clarão das velas.

Dir-se-ia que esse rubim de sangue palpita, aceso mais intensamente no colorido rubro pele luxúria dos Cânticos, que despertam, ciliciando, todas as virgindades da Carne.

Fortes, violentas rajadas de sons perpassam convulsamente nos violoncelos, enquanto que as vozes se elevam, sobem, num veemente desejo, quase impuras, maculadas quase, numa intenção de nudez.

E, através da volúpia das sedas e damascos pesados que ornamentam o templo, das luzes adormentadoras. dos perturbadores incensos, da opulência festiva dos paramentos dos altares e dos sacerdotes, das egrégias músicas sacras, sente-se impressionativamente pairar em tudo a volúpia maior - a volúpia branca dos Cânticos.

Comentários: Apesar de empregar o misticismo e algumas palavras do vocabulário simbolista, o texto mostra nítida inspiração parnasiana. principalmente por sua construção de imagens mais precisas e detalhadas. Em certos momentos, sentimo-nos diante de um poema de construção clássica, até mesmo pelo rigor descritivo e pela economia de figuras.

Estrutura de Broquéis

Broquéis apresenta 54 poemas, sendo 47 sonetos. Os versos são decassílahos rimados, variando-se o esquema de rimas.

Esboços de atmosfera vaga: Em Sonhos, Monja, Carnal e Místico, Lua, Primeira Comunhão, Velhas Tristezas, Vesperal, Cristais, Sinfonias do Ocaso, Música Misteriosa, Ângelus, Sonata, Incensos e Luz Dolorosa. Nesses poemas há predominância do branco, imagens cósmicas e uma musicalidade etérea.

Metalinguagem

Antífona, Siderações, Clamando, Sonho Branco, Torre de Ouro, Sonhador, Foederis Arca, Post Mortem, Supremo Desejo e Tortura Eterna. Nesses poemas há a tematização do ato poético ou da condição do poeta. Em todos eles, busca-se valorizar as intenções da poesia simbolista: vaga, abstrata, musical, sensorial.

Erotismo sensual

Lésbia, Múmia, Lubricidade, Braços, Encarnação, Tulipa Real, Dança do Ventre, Dilacerações, Sentimentos Carnais e Serpente de Cabelos. Em Cruz e Sousa, o erotismo é algo densamente carnal, de natureza física. Com isso, as imagens de sensualidade perdem algumas vezes o caráter vago da poesia simbolista para aproximarem-se mais do Expressionismo, devido mesmo a certas deformações e acumulações metafóricas. Sua influência, entretanto, é Baulelaire.

Erotismo espiritual

Canção da Formosura, Beleza Morta, Deusa Serena, Flor do Mar, Alda e Lembranças Apagadas. Nesses poemas, o amor é platonizado, ganhando dimensão mais etérea e abstrata. Os tons bruscos e rudes do erotismo sensual desvanecem¬se, atingindo luminosidades e retomando os matizes variados do branco.

Retratos extravagantes

Satã, Afra, Judia, Tuberculosa, Regenerada, Rebelado e Majestade Caída. Esses poemas mostram imagens algumas vezes radicalmente fortes, traços de anormalidade ou extravagância são acentuados. A exceção fica por conta de “Tuberculosa”, cuja composição é nitidamente simbolista. Os demais denotam influência parnasiana.

Visões místicas

Cristo de Bronze, Regina Coeli, Noiva da Agonia, Visão da Morte e Aparição. Esse grupo de poemas traduz claramente o misticismo simbolista.

Alegorias pessimistas

A Dor e Acrobata da Dor. Os dois poemas mostram tendência parnasiana. O segundo emprega “sintaxe meio clássica” e talvez seja a composição mais parnasiana de Broquéis, o que em nada perturba o seu virtuosismo sonoro.

Análise de Broquéis

Primeiramente, devemos levar em conta que Cruz e Sousa foi chamado pelo crítico Tristão de Ataíde de “poeta solar”, por causa da predominância do branco e de claridades em seus poemas. Usando e abusando de substantivos e adjetivos que denotam a presença quase constante do branco em todos os seus matizes, Cruz e Sousa deixou patente sua obsessão por essa cor, chegando, em certos momentos, a tornar evidente para os leitores a sugestão de vazio. Essa era a pretensão do Simbolismo enquanto estética: chegar ao vago absoluto, à imprecisão completa. Os versos abaixo, que abrem o livro, são um bom exemplo disso:

"Ó Formas alvas, brancas. Formas claras

De luares, de neves, de neblinas!...

Ó Formas vagas, tinidas, cristalinas...

Incensos dos turíbulos das aras..." (Antífona)

Afinal, do que estará o poeta falando? De nada, já que sua intenção é justamente criar o inusitado, a sugestão absoluta do branco. Para tanto, emprega redundantemente expressões e palavras que sugerem clareza: “alvas”, “brancas”, “claras”, “de luares”, “de neves”, “de neblinas”. Deixa ainda mais patente a busca do vago em: “formas vagas”, “fluidas”, “cristalinas”. “Incensos”. Já transparece aqui outro recurso predominante na poética desse simbolista, que é o emprego de vocabulário das liturgias religiosas: “turíbulos” e “aras”, ou seja, vasos utilizados nas celebrações para se queimar incenso e os próprios altares dessas liturgias.

Aproveitaremos os mesmos versos para falarmos da musicalidade, outra característica simbolista. A musicalidade desses versos nasce de três decorrências:

A primeira é aparente - o emprego das rimas (esquema ABBA), que brota da influência clássica do Parnasianismo e que não foi abandonada por Cruz e Sousa quanto aos aspectos formais do poema. Devemos notar que ele emprega rimas ricas. No caso, adjetivo e substantivo, entre o primeiro e o quarto versos, e substantivo e adjetivo, entre o segundo e terceiro versos.

A segunda nasce do emprego de uma figura de construção, a assonância, muito utilizada no Simbolismo, que consiste na repetição da vogal, no caso a vogal “a”, como podemos perceber no primeiro verso: “Ó Formas alvas, brancas, Formas claras”

A terceira, bem menos evidente que as demais, surge com o emprego dos versos harmônicos, que consistiriam num processo de justaposição cumulativa de imagens e “de sons simultâneos, de palavras isoladas que vibram sem conexão sintática”. Os versos que compõem a estrofe não apresentam verbos, são frases nominais, que parecem se unir numa densa imagem ilógica, abstrata, mas que mantêm uma cadência sonora. Cada expressão ou palavra parece vibrar e ganhar sentido no termo seguinte, criando uma densa melodia. Esse esquema de construção predomina em Broquéis.

Outros temas representam verdadeira obsessão em Cruz e Sousa e, por conseqüência em Broquéis: amor, morte, sonho, fantasia, quimera, mulher, crepúsculo, lírio, noite, música. O amor e a morte são evidentes heranças românticas, já que o Simbolismo representa uma retomada do “mal do século”. Entretanto, encontramos uma predominância do erotismo sobre o platonismo. Em vários momentos a imagem de pureza da mulher não consegue evitar que o eu-lírico extrapole seus idealismos e exponha seus desejos carnais. Símbolo maior desse erotismo, que povoa a poesia de Cruz e Sousa, encontramos em Lésbia, sua representação máxima:

“Cróton selvagem, tinhorão lascivo,

Planta mortal, carnívora, sangrenta.

Da tua carne báquica rebenta

A vermelha explosão de um sangue vivo.”

Nem sempre, porém, a mulher é vista como um ser carnal e corpóreo, sendo algumas vezes representada pela feminilidade da lua, por exemplo:

“Então, ó Monja branca dos espaços,

Parece que abres para mim os braços,

Fria, de joelhos, trêmula, rezando...” (Monja)

“E ondulam névoas. cetinosas rendas

De virginais, de prónubas alvuras...

Vagam aladas e visões e lendas

No flórido noivado das Alturas...(Lua)

Essa tendência para a personificação ou prosopopéia aparece também em vários outros poemas.

Outra característica de Broquéis é o emprego da sinédoque, já que o poeta utiliza partes do corpo humano para representá-lo inteiro:

“Braços nervosos, brancas opulências.

Brumais brancuras, fúlgidas brancuras,

Alvuras castas, virginais alvuras,

Lactescências das raras lactescências.” (Braços)

Outro elemento importante em toda a obra é o misticismo, que se apresenta numa intensidade quase dominante na maior parte dos poemas. A alma do poeta parece repleta de uma mística que segue o ritual de suas imagens, quase sempre aéreas, voláteis. Mesmo o elemento mundano sofre profunda transforrnação, ganhando leveza e brilho. Uma misteriosa música parece dominar os sentidos, refletindo os acordes de um hino religioso. Por isso os poemas assemelham-se tanto, são compassos de uma mesma música que vai conduzindo o leitor pelo universo mais íntimo do artista. Mesmo o vocabulário, tantas vezes repetido denota que o acorde de um verso, de um poema, parece continuar em outro, tantas vezes repetido, como num ladainha que vai ganhando intensidade e novas cores. Esse processo reiterativo é enfim um recurso formal que possibilita o entendimento de Broquéis.

“Pelos raios fluídicos, diluentes

Dos Astros, pelos trêmulos velários,

Cantam Sonhos de místicos templários,

De ermitões e de ascetas reverentes...

Cânticos vagos, infinitos, aéreos

Fluir parecem dos Azuis etéreos.

Dentre os nevoeiros do luar tinindo...” (Música Misteriosa)

Em diversos poemas, encontramos a presença da metalinguagem, ou seja, o discurso poético voltado ao seu próprio fazer. Tomamos como exemplo uma estrofe de Antífona que é uma espécie de profissão de fé do Simbolismo:

“Que o pólen de ouro dos mais finos astros

Fecunde e inflame a rima clara e ardente...

Que brilhe a correção dos alabastro

Sonoramente, luminosamente.”

Toda essa inventividade lingüística gerou um certo espanto no público da época e ainda vem arrancando exclamações dos leitores incrédulos diante dessa polifonia simbolista. Mas, estejamos certos de que é do novo que brota a modernidade, é do espanto que nascem a genialidade e a criatividade e é de tudo isso que germina a poesia etérea e misteriosa de Cruz e Sousa.

Alguns textos comentados de Broquéis

Antífona

Ó Formas alvas, brancas. Formas claras

De luares, de neves, de neblinas!...

Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...

Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras,

De Virgens e de Santas vaporosas...

Brilhos errantes, mádidas frescuras

E dolências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas.

Harmonias da Cor e do Perfume

Horas do Ocaso, trêmulas, extremas.

Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,

Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...

Dormências de volúpicos venenos

Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,

Inefáveis, edênicos, aéreos,

Fecundai o Mistério destes versos

Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades

Que fuljam, que na Estrofe se levantem

E as emoções, todas as castidades

Da alma do Versos, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros

Fecunde e inflame a rima clara e ardente...

Que brilhe a correção dos alabastros

Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça

De carnes de mulher, delicadezas...

Todo esse eflúvio que por ondas passa

Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões álacres,

Desejos, vibrações, ânsias, alentos,

Fulvas vitórias, triunfamentos acres,

Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas

De amores vãos, tantálicos, doentios...

Fundas vermelhidões de velhas chagas

Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,

Nos turbbilhões quiméricos do Sonho,

Passe, cantando, ante o perfil medonho

E o tropel cabalístico da Morte...

O poema em versos decassílabos dispostos em quadras (ou quartetos) é uma espécie de "profissão de fé" da poesia simbolista, verdadeiro texto-programa das intenções de Cruz e Sousa. Nele encontramos os objetivos da poética decadentista, tais como o absolutamente vago, a musicalidade, o misticismo, a evasão e o pessimismo. O título significa um versículo recitado antes de um salmo, o que por si só já traduz o misticismo do autor. O poema, como um todo, segue a proposta de Verlaine de apenas sugerir e nunca nomear os objetos. Está também presente a metalinguagem, já que há uma verdadeira exaltação à forma e à função da palavra. Estão ainda presentes a sinestesia, as aliterações e as assonâncias. A predominância de frases nominais sugere a presença dos versos harmônicos, já que o primeiro verbo só aparecerá no final da terceira estrofe. O "poeta solar" já deixa também evidente sua predileção exagerada pelo branco, sugerido na primeira estrofe em todos os seus matizes.

Texto 2 - Siderações

Para as Estrelas de cristais gelados

As ânsias e os desejos vão subindo,

Galgando azuis e siderais noivados

De nuvens brancas a amplidão vestindo...

Num cortejo de cânticos alados

Os arcanjos. cítaras ferindo,

Passam, das vestes nos troféus prateados,

As asas de ouro finamente abrindo...

Dos etéreos turíbulos de neve

Claro incenso aromal. límpido e leve.

Ondas nevoentas de Visões levanta...

E as ânsias e os desejos infinitos

Vão com os arcanjos formulando ritos

Da eternidade que nos Astros canta...

Comentários: O soneto em versos decassílabos representa bem o caráter vago da poesia de Cruz e Sousa, que procura construir através do cruzamento de sensações (sinestesias) imagens sugestivas do céu. O caráter abstrato é obtido pelo emprego da visão (emprego de cores e luminosidades), audição (sons de instrumentos e cânticos) e olfato (aroma do incenso). É interessante notarmos que o ritmo do poema é lento, acompanhando uma espécie de bailado em forma ascendente até soltar-se completamente no último verso.
REALISMO, NATURALISMO e PARNASIANISMO
O Realismo e o Naturalismo têm início na França, considerada no século XIX como o centro cultural do mundo. Logo se espalha para toda a Europa e Portugal.
Na França
Realismo: Madame Bovary, de Gustave de Flaubert - 1857
Naturalismo: O romance experimental, de Emile Zola - 1867.
Parnasianismo: Le Parnasse contemporain (revista) - 1866, 1871 e 1876
Em Portugal
1865 - Questão Coimbrã
1871 - Conferência do Cassino Lisbonense.
1875 - Publicação de O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, primeiro romance realista-naturalista.
1890 - Oaristos, de Eugênio de Castro. Início do Simbolismo.
No Brasil (1881)
Realismo - Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
Naturalismo – O mulato, de Aluísio Azevedo
Referências históricas
Contexto sócio-político da época:
• teorias de nova interpretação da realidade - Positivismo, Socialismo Científico e Evolucionismo;
• na Europa vive-se a 2ª Revolução Industrial;
• no Brasil, campanha abolicionista a partir de 1850 que culmina com a Lei Áurea em 1888;
• fundação do Partido Republicano nacional após a Guerra do Paraguai;
• decadência da monarquia brasileira;
• fim da mão-de-obra escrava e sua substituição por trabalho assalariado;
• imigrantes europeus para a lavoura cafeeira;
• economia mais voltada para o mercado externo, sem colonialismo.
Datas importantes:
1840-1889: vigência do Segundo Reinado (D. Pedro II)
1850: Extinção do tráfico negreiro
Meados de 1870: Ampliação do comércio exterior e da imigração européia; aumento da exportação do café e início da industrialização.
1889: Proclamação da República
O Realismo, escola que substitui o Romantismo no Brasil, é uma reação diametralmente oposta aos excessos do Romantismo. Vejamos as principais diferenças entre Romantismo e Realismo:

ROMANTISMO (1836-1881)
- Ênfase na fantasia;
- Predomínio da emoção;
- Proximidade emocional entre autor e os temas;
- Subjetividade;
- Escapismo (literatura como fuga da realidade);
- Personagens idealizados;
- Nacionalismo;

REALISMO (1881 – 1893)
- Ênfase na realidade;
- Predomínio da razão;
- Distanciamento racional entre o autor e os temas;
- Objetividade;
- Engajamento (literatura como forma de transformar a realidade)
- Retrato fiel das personagens;
- A mulher numa visão real, sem idealizações...
- Universalismo.
Características do Realismo e do Naturalismo
Realismo e Naturalismo foram as duas escolas literárias de domínio narrativo no fim do século XIX e início do século XX. Sua contrapartida na poesia é chamada de Parnasianismo.
Realismo: os escritores voltavam-se para a observação do mundo objetivo. Procuravam fazer arte com os problemas concretos de seu tempo, sem preconceitos ou convenções. Focalizavam o cotidiano. O adultério, o clero e a sociedade burguesa em crise tornaram-se temas para as obras desse período.
Naturalismo: radicalizou o determinismo (o homem como produto de leis físicas e sociais) do movimento realista. Essa nova tendência apareceu em uma situação de grande pessimismo. Os escritores naturalistas introduziram o chamado "romance experimental". O movimento não se restringiu à ciência positivista. Registrou, como os realistas, não o passado, mas o presente com temas inovadores e linguagem atual. Denunciou a hipocrisia e caracterizou as lutas sociais, temáticas novas, que anteciparam a literatura de ênfase social do século XX.





Características do Realismo:
Objetivismo;
Descrições e adjetivações objetivas;
Linguagem culta e direta;
Mulher não idealizada; real. Ex.: Marcela e Virgília (Memórias Póstumas de Brás Cubas), Sofia (Quincas Borba)...
Amor e outros interesses subordinados aos interesses sociais;
Herói problemático;
Narrativa lenta, tempo psicológico;
Personagens trabalhados psicologicamente.

Características do Naturalismo:
Determinismo biológico;
Objetivismo científico;
Temas de patologia social;
Observação e análise da realidade;
Ser humano descrito sob a ótica do animalesco e do sensual;
Linguagem simples;
Descrição e narrativa lentas;
Impessoalidade;
Preocupação com detalhes.

DIFERENÇAS ENTRE REALISMO E NATURALISMO

REALISMO
- Forte influência da literatura de Gustave Flaubert (França).
- Romance documental, apoiado na observação e na análise.
- A investigação da sociedade e dos caracteres individuais é feita “de dentro para fora”, por meio de análise psicológica capaz de abranger sua complexidade, utilizando a ironia, que sugere e aponta, em vez de afirmar.
- Volta-se para a psicologia, centrando-se mais no indivíduo.
- As obras retratam e criticam as classes dominantes, a alta burguesia urbana e, normalmente, os personagens pertencem a esta classe social.
- O tratamento imparcial e objetivo dos temas garante ao leitor um espaço de interpretação, de elaboração de suas próprias conclusões a respeito das obras.

NATURALISMO
- Forte influência da literatura de Émile Zola (França).
- Romance experimental, apoiado na experimentação e observação científica.
- A investigação da sociedade e dos caracteres individuais ocorre “de fora para dentro”, os personagens tendem a se simplificar, pois são vistos como joguetes, pacientes dos fatores biológicos, históricos e sociais que determinam suas ações, pensamentos e sentimento.
- Volta-se para a biologia e a patologia, centrando-se mais no social.
- As obras retratam as camadas inferiores, o proletariado, os marginalizados e, normalmente, os personagens são oriundos dessas classes sociais mais baixas.
- o tratamento dos temas com base em uma visão determinista conduz e direciona as conclusões do leitor e empobrece literariamente os textos.


Quadro comparativo
Realismo Naturalismo
* a investigação da sociedade e dos caracteres individuais é feita de "dentro para fora", isto é, por meio de uma análise psicológica capaz de abranger toda a sua complexidade, utilizando entre outros recursos a ironia, que sugere e aponta, em vez de afirmar; * a investigação da sociedade e dos caracteres individuais ocorre "de fora para dentro"; as personagens tendem a se simplificar, pois são vistas como joguetes, títeres dos fatores biológicos e sociais que determinam suas ações, pensamentos e sentimentos;
* ênfase nas relações entre os homens e a sociedade burguesa, atacando suas instituições e seus fundamentos ideológicos: o casamento, o clero, a escravidão do homem ao trabalho como meio de "vencer na vida"; as contradições entre ricos e pobres, vistas da ótica dos "vencidos"(os marginais, os operários, as prostitutas) e não dos "vencedores". * ênfase na descrição das coletividades, dos tipos humanos que encarnam os vícios, as taras, as patologias e anormalidades reveladoras do parentesco entre o homem e o animal, no homem descendo à condição animalesca em sua situação de mero produto das circunstâncias externas, como a hereditariedade e o maio ambiente;
* o tratamento imparcial e objetivo dos temas garante ao leitor um espaço de interpretação, de elaboração de suas próprias conclusões a respeito das obras. * o tratamento dos temas a partir de uma visão determinista conduz e direciona as conclusões do leitor e empobrece literalmente os textos.


ROMANCE REALISTA

MACHADO DE ASSIS

1ª FASE (Tendências românticas) Obras: Ressurreição, A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia.

Características Gerais:
- crença nos valores da época;
- estrutura de folhetim
- esquematismo psicológico.

2ª FASE (Tendências realistas) Obras: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires.

Características Gerais:
Análise psicológica (os seres vistos em sua complexidade psíquica)
Análise dos valores sociais (os valores que a sociedade cria para justificar sua própria existência)
Pessimismo (descrença nos indivíduos e na organização social)
Ironia (o chamado “sense of humor”, inspirado nos ingleses Stern e Swift)
Refinamento da linguagem narrativa.

Principais personagens:
Brás Cubas, Virgília, Quincas – (Memórias Póstumas de Brás Cubas)
Bentinho, Capitu, Escobar, José Dias, – (Dom Casmurro)
Quincas Borba, O cão e o Filósofo, Rubião, Sofia e Palha – (Quincas Borba)


ROMANCE NATURALISTA

ALUÍSIOAZEVEDO

Principais características:
- Expressão de destaque no naturalismo brasileiro;
- Sua linguagem literária era chocante, objetiva e direta. Procurava denunciar pela palavra a miséria, a corrupção moral. Muitos de seus personagens são doentes físicos, mentais, vítimas de suas próprias imperfeições.
- Demonstrava nítida preocupação com as classes marginalizadas pela sociedade.

OBRAS
- O Mulato
- Casa de Pensão
- O Cortiço (obra máxima do Naturalismo brasileiro).

O CORTIÇO
- Revelação da miséria urbana
- Enfoque nas classes marginais
- Determinismo do meio (tese dominante)
- Domínio do coletivo sobre o individual
- Desagregação dos instintos
- Principais personagens: João Romão, Bertoleza, Miranda, Jerônimo, Rita Baiana e Pombinha.


RAUL POMPÉIA

Principais características:
- Nasceu em Angra dos Reis e suicidou-se no Rio de Janeiro, na noite de Natal.
- Sua obra “O Ateneu” apresenta inspiração na adolescência do autor (estudou num colégio interno, o Colégio Abílio)
- Sua técnica se prende ao Impressionismo em que o artista enfatiza a impressão que a realidade despertou nele.

PARNASIANISMO “arte pela arte”

- Surge na França como reação à poesia romântica
- Procura corresponder, em poesia, ao Realismo na prosa

Características do Parnasianismo:
- Objetividade e impessoalidade do poeta
- Culto à Forma, entendida como métrica, rima e versificação.
- Utilização de fórmulas poéticas fixas como o soneto.
- “Arte pela Arte”: a arte só tem compromisso com ela mesma
- Tema principal: a mitologia greco-latina

PARNASIANISMO NO BRASIL

- Literatura descompromissada das elites
- Absoluto domínio em termos de prestígio
- Formação da tríade parnasiana (Olavo Bilac, Alberto Oliveira e Raimundo Correia)
- Uma das causas da Semana de Arte Moderna

TEMAS:
- A mitologia e a história greco-romana
- A natureza
- O amor sensual
- A pátria

OLAVO BILAC (Principal poeta)
OBRAS:
- Poesias
- Tarde

PRINCIPAIS POEMAS
- In extremis
- O caçador de esmeraldas
- Via-láctea
- Profissão de fé
- Sarças de fogo

Profissão de fé (fragmento)
(...)
Invejo o ourives quando escrevo: Torce, aprimora, alteia, lima
Imito o amor A frase; e, enfim,
Com que ele, em ouro, o alto relevo No verso de ouro engasta a rima,
Faz de uma flor. Como um rubim.
Imito-o. E, pois, nem de Carrara Quero que a estrofe cristalina,
A pedra firo: Dobrada ao jeito
O alvo cristal, a pedra rara, Do ourives, saia da oficina
O ônix prefiro. Sem um defeito:
Por isso, corre, por servir-me, Assim procedo. Minha pena
Sobre o papel Segue esta norma,
A pena, como em prata firme Por te servir, Deusa serena,
Corre o cinzel. Serena Forma!”
(...)
Ouvir Estrelas

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso”. “ E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: - Tresloucado amigo.
Que conversas com elas?
Que sentido tem o que dizem,
quando estão contigo?
E eu vos direi. - "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."


Um Beijo

Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior...Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
E do teu gosto amargo me alimento,
E rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
Batismo e extrema-unção, naquele instante
Por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,
Beijo divino! e anseio, delirante,
Na perpétua saudade de um minuto...



Bibliografia consultada:

http://pessoal.educacional.com.br/up/4380001/1434835/t139.asp
http://www.nilc.icmc.usp.br/nilc/literatura/realismo.naturalismo1.htm
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/sala_de_aula/portugues/literatura_brasileira/estilos_literarios/5_realismo_naturalismo_brasil
http://www.sitedeliteratura.com/Litbras/Realismo.htm
http://www.graudez.com.br/literatura/realismonaturalismo.html
http://www.geocities.com/slprometheus/html/his7.htm

Leitura diferenciada de Dom Casmurro

Dom Casmurro, de Machado de Assis, traz memórias de um personagem amargurado que acredita ter sido traído pela mulher

Bento Santiago, o amargurado e solitário personagem-narrador, diz ter sido traído por Capitu. Esse suposto adultério é pano de fundo para que Machado de Assis introduza de forma inovadora questões relativas à situação da mulher

Publicado pela primeira vez em 1899, Dom Casmurro é uma das grandes obras de Machado de Assis e confirma o olhar certeiro e crítico que o autor estendia sobre toda a sociedade brasileira. Também a temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da litera-tura brasileira: Capitu.

MUITAS LEITURAS
Há uma discussão em torno da obra que alimenta os espíritos mais inflamados: Capitu traiu ou não seu marido Bento Santiago, o Bentinho?


O romance, entretanto, presta-se a muitas leituras, e é interessante ver como a recepção ao livro se modificou com o passar do tempo. Quando foi lançado, era visto como o relato inquestionável de uma situação de adultério, do ponto de vista do marido traído. Depois dos anos 1960, quando questões relativas aos direitos da mulher assumiram importância maior em todo o mundo, surgiram interpretações que indicavam outra possibilidade: a de que a narrativa pudesse ser expressão de um ciúme doentio, que cega o narrador e o faz conceber uma situação imaginária de traição.
Machado de Assis, autor sutil e de penetração aguda em questões sociais, arma o problema e testa seu leitor. É impressionante como isso vale ainda hoje, mais de um século depois do lançamento do livro. O romance é a história de um homem de posses que ama uma moça pobre e esperta e se casa com ela. Em sua velhice, ele escreve um romance de memórias para compreender melhor a vida.


Capitu, até a metade do livro, é quem dá as cartas na relação. É inteligente, tem iniciativa, procura articular maneiras de livrá-lo do seminário etc. Trata-se de uma garota humilde, mas avançada e independente, muito diferente da mulher vista como modelo pela sociedade patriarcal do século XIX. Nesse sentido, Capitu representa no livro duas categorias sociais marginalizadas no Brasil oitocentista: os pobres e as mulheres. A personagem acabará por “perturbar” a família abastada, ao casar-se com o homem rico.


Percebe-se, por isso, o peso do possível adultério em suas costas. Não se trata apenas de uma questão conjugal entre iguais, mas de uma condenação de classe. Bentinho utiliza o arbítrio da palavra para culpar sua esposa. Mas é ele quem narra os acontecimentos e, por isso, pode manipular os fatos da maneira que melhor lhe convém. Não se sabe até que ponto os fatos relatados correspondem ao que ocorreu, ou são uma interpretação feita pelo personagem, que, além de tudo, escreve que não tem boa memória.


Nesse sentido, a questão central do livro não é o adultério, e sim como Machado introduz na literatura brasileira o problema das classes e, ainda, de forma inovadora, a questão da mulher. Dom Casmurro coloca no centro de sua temática a menina que não se deixa comandar e, em virtude disso, perturba a ordem vigente naquele ambiente social estreito e conservador.

ENREDO
O romance inicia-se numa situação posterior a todos os seus acontecimentos. Bento Santiago, já um homem de idade, conta ao leitor como recebeu a alcunha de Dom Casmurro. A expressão fora inventada por um jovem poeta, que tentara ler para ele no trem alguns de seus versos. Como Bento cochilara durante a leitura, o rapaz ficou chateado e começou a chamá-lo daquela forma.


O narrador inicia então o projeto de rememorar sua existência, o que ele chama de “atar as duas pontas da vida”. O leitor é apresentado à infância de Bentinho, quando ele vivia com a família num casarão da rua de Matacavalos.


O primeiro fato relevante narrado é também seu primeiro motivo de preocupação. Bentinho escuta uma conversa entre José Dias e dona Glória: ela pretende mandá-lo ao seminário no cumprimento de uma promessa feita pouco antes de seu nascimento. A mãe, que já havia perdido um filho, prometera que, se o segundo filho nascesse “varão”, ela faria dele padre. Na conversa, dona Glória soubera da amizade estreita entre o menino e a filha de Pádua, Capitolina.


Bentinho fica furioso com José Dias, que o denunciara, e expõe a situação a Capitu. A menina ouve tudo com atenção e começa a arquitetar uma maneira de Bentinho escapar do seminário, mas todos os seus planos fracassam. O garoto segue para o seminário, mas, antes de partir, sela, com um beijo em Capitu, a promessa de que se casaria com ela.


No seminário, Bentinho conhece Ezequiel de Souza Escobar, que se torna seu melhor amigo. Em uma visita a sua família, Bentinho leva Escobar e Capitu o conhece.


Enquanto Bentinho estuda para se tornar padre, Capitu estreita relações com dona Glória, que passa a ver com bons olhos a relação do filho com a garota. Dona Glória ainda não sabe, contudo, como resolver o problema da promessa e pensa em consultar o papa. Escobar é quem encontra a solução: a mãe, em desespero, prometera a Deus um sacerdote que não precisava, necessariamente, ser Bentinho. Por isso, no lugar dele, um escravo é enviado ao seminário e ordena-se padre.

TRISTE E NOSTÁLGICO
Bentinho vai estudar direito no Largo de São Francisco, em São Paulo. Quando conclui os estudos, torna-se o doutor Bento de Albuquerque Santiago. Ocorre então o casamento tão esperado entre Bento e Capitu. Escobar, por seu lado, casara-se com Sancha, uma antiga amiga de colégio de Capitu. Capitu e Bentinho formam um “duo afinadíssimo”.


Essa felicidade, entretanto, começa a ser ameaçada com a demora do casal em ter um filho. Escobar e Sancha não encontram a mesma dificuldade: têm uma bela menina, a quem colocam o nome de Capitolina.


Depois de alguns anos, Capitu finalmente tem um filho, e o casal pode retribuir a homenagem que Escobar e Sancha lhe haviam prestado: o filho é batizado com o nome de Ezequiel.


Os casais passam a conviver intensamente. Bento vê uma semelhança terrível entre o pequeno Ezequiel e seu amigo Escobar, que, numa de suas aventuras na praia – o personagem era excelente nadador –, morre afogado.


Bento enxerga no filho a figura do amigo falecido e fica convencido de que fora traído pela mulher. Resolve suicidar-se bebendo uma xícara de café envenenado. Quando Ezequiel entra em seu escritório, decide matar a criança, mas desiste no último momento. Diz ao garoto, então, que não é seu pai. Capitu escuta tudo e lamenta-se pelo ciúme de Bentinho, que, segundo ela, fora despertado pela casualidade da semelhança.


Após inúmeras discussões, o casal decide separar-se. Arruma-se uma viagem para a Europa com o intuito de encobrir a nova situação, que levantaria muita polêmica. O protagonista retorna sozinho ao Brasil e se torna, pouco a pouco, o amargo Dom Casmurro. Capitu morre no exterior e Ezequiel tenta reatar relações com ele, mas a semelhança extrema com Escobar faz com que Bento Santiago o rejeite novamente.


O destino de Ezequiel é infeliz: ele morre de febre tifóide durante uma pesquisa arqueológica em Jerusalém.


Triste e nostálgico, o narrador constrói uma casa que imita sua casa de infância, na rua de Matacavalos. O próprio livro é também uma tentativa de recuperar o sentido de sua vida. No fim, o narrador parece menosprezar um pouco a própria criação. Convence-se de que o melhor a fazer agora é escrever outra obra sobre “a história dos subúrbios”.

NARRADOR
O narrador é Bento Santiago, transformado já no velho Dom Casmurro. O foco narrativo é, portanto, em primeira pessoa e toda a narrativa é uma lembrança do personagem sobre sua vida, desde os tempos de criança, quando ainda era chamado de Bentinho.

TEMPO
O tempo da narrativa é psicológico, e não cronológico. Esse recurso é chamado impressionismo, porque o narrador se detém nas experiências que marcaram sua subjetividade. Seria usada pelo escritor francês Marcel Proust em sua obra Em Busca do Tempo Perdido. A falibilidade da memória surge como fator de complexidade, uma vez que uma lembrança só pode ser acessada de um momento presente.


Os acontecimentos, então, passam pelo filtro da subjetividade presente. É por isso que a descrição que o narrador faz de Capitu, como uma pessoa volúvel e sensual, deve ser posta em dúvida pelo leitor. O sentimento de ciúme exacerbado de Bento pode ter desvirtuado a figura da personagem.